Prefácio da revista SuperRio Superficções
por Bernardo José De Souza
Forças obscuras movem o mundo.
Em paralelo ao que chamamos realidade, articulam-se instâncias simbólicas a operar em um plano fantasma, uma dimensão tão solerte e insidiosa quanto efetiva na orquestração do tabuleiro político que dá os rumos ao planeta Terra neste primeiro quartel do século XXI.
Para além do diapasão sociológico amparado em padrões científicos que guardam dívidas históricas com o arcabouço teórico dos novecento, desenha-se em nosso horizonte uma paisagem ficcional que desafia até mesmo as mais consolidadas leis da física, os pérfidos e malévolos fluxos econômicos e as sedimentadas, embora fantasiosas, instâncias políticas, místicas ou mesmo geográficas.
Superficções, a cosmogonia divisada por Antoine Guerreiro do Divino Amor para investigar uma realidade que subjaz a outra realidade - artificial e escamoteada - constitui uma cartografia de beleza e acuidade raras. E, por paradoxal que possa nos parecer, investir em uma breve síntese desse outro mundo - que nada mais é que o nosso próprio - demanda um pé no chão e boa dose de racionalidade, a qual talvez nos permita decifrar, ainda que apenas em alguma medida, os móveis que levaram o artista a conceber tal desvario eivado de lucidez e dotes visionários (não fosse desafiadora minha tarefa de aqui deslindar a obra do artista, estaria eu incorrendo em outra ficção, inspirado por aquela feita pelo próprio Antoine, a qual se sobrepõe à nossa para trazer à luz a mais rotineira e pura realidade).
Formado em arquitetura na École Nationale Supérieure d’Architecture de Grenoble e La Cambre Architecture de Bruxelas, Guerreiro do Divino Amor é descendente de pai europeu e mãe brasileira, ele suíço, ela carioca, um mestiço no melhor estilo pós-colonial - o nome Divino Amor foi roubado de uma de suas madrastas, pastora de igreja evangélica no Rio de Janeiro. Em seus estudos preliminares sobre esse mundo que é mais mundo, evocou os filósofos e os mestres responsáveis por conformar o universo segundo a ótica e a percepção inauguradas pela civilização ocidental. Entretanto, o cânone a reger nosso planeta desde o malfadado advento da modernidade haveria de exigir do artista uma dramática virada conceitual, de modo a lhe permitir escrutinar as velhas estruturas de poder, voláteis e obtusas, apesar de sólidas em seus ostensivos marcos estruturais - espelhos da verticalidade científica e acadêmica.
Inicialmente interessado pelo conjunto de forças a comandar os destinos e os desfechos de nossa épica desventura sobre a Terra, o artista acabou por abandonar a escala global e, por consequência, a proposição de uma nova teoria sócio-política e simbólica, de proporções megalomaníacas, para realizar sua guinada iconoclasta rumo ao sul, um retorno aos trópicos maternos, o que lhe concederia o sabor da especulação acerca das realidades novomundistas - a exemplo do que fizera Levi-Strauss há quase um século atrás.
Em seu novo contexto, banhado pela luz do sol e pelas águas equatorianas, Guerreiro do Divino Amor acabou por recobrar os olfatos e reminiscências da infância, bem como os medos, aventuras e fantasias que alimentaram sua sanha adolescente: sexo e religião embalados em um misto de euforia, transgressão e autoritarismo. E como das tensões é feito o mundo, e apenas a partir delas é possível dar o passo adiante, a reconstrução de suas próprias teorias, em solo brasileiro, aportou renovado fôlego às seminais especulações sobre as dinâmicas sociais e os abalos políticos experimentados pela humanidade.
Para enfim tangenciar a superealidade que nos põe em pé na extenuante jornada dia-após-dia, incorporou os pecados e os delitos locais, bem como os vernizes inescrupulosos de um país que insiste em fazer tábula rasa de sua experiência histórica e sempre aludir a um futuro prometido, embora jamais experimentado - daí derivam a máxima proferida pelo escritor Stefan Zweig, “Brasil, o País do futuro!”, e o bordão “50 anos em 5”, do presidente Juscelino Kubitscheck (responsável por construir Brasília neste exíguo espaço de tempo, cidade que, segundo o arquiteto Sérgio Bernardes, constituiu um fragoroso “tropeço histórico”, por N razões, entre elas a de apartar a população do eixo forte do Poder).
Já em pleno novo milênio, quando sabemos ser nossa democracia representativa uma falácia - como de resto boa parte das demais ao redor do globo -, e quando sabemos seguir sob os comandos das oligarquias que historicamente conduziram nossa pátria, bem como do monopólio midiático e de sua ardilosa disseminação das ideias reacionárias que hoje amalgamam a nação, resta imperioso buscarmos alternativas semânticas e simbólicas que possam dar conta do inferno no qual se converteu a realidade forjada por uma estrutura política fascista e velada, a qual segue pondo em marcha os sucessivos e reeditados projetos venais de poder - tudo isso para não falar no protagonismo da igreja evangélica no processo de submissão do povo às leis perversas da tributação imposta pelo “Divino”.
Superficções baixa sua lupa sobre o Rio de Janeiro, terra-síntese da brasilidade que oblitera o racismo, o preconceito e a truculência do Estado, aspergindo sobre o mundo seu antídoto à fúria das massas, e devolvendo a elas um painel cuja beleza de tintas tropicais revela-se tão sublime quanto ficcional. As categorias “sociológicas” de Guerreiro do Divino Amor vem solapar quaisquer planos de manutenção das esferas de poder outrora conhecidas, pois ele as substitui por novas, operantes abaixo e acima do reino dos meros mortais - seus efeitos gasosos e nefastos não mais podem ser sublimados, vem à tona como a lava dos vulcões, refletem alegoricamente o horror do andar de baixo, cegando, assim, quem sabe, os olhos embotados dos medalhões em seus barrocos camarotes funcionais.
Enquanto se insiste em viver no matrix da realidade inventada, sem sequer questioná-la, as superficções descortinam um novo universo, tão ativo quanto as forças de trabalho que geram as riquezas jamais vistas, sempre prometidas e nunca alcançadas. É tudo política, nos diz o Guerreiro!
Como uma espécie de esfinge com LSD na boca, ele nos indaga: abram os olhos e me respondam: ora lodo, ora purpurina, o que está a correr nas veias abertas do povo brasileiro?
The world is moved by dark forces.
Existing right alongside what we call reality, there is a supernatural level with connected symbolic figures, a dimension that is just as deceitful and insidious as it is effective in manipulating the political arena governing our planet in the early decades of the 21st century.
Beyond the sociological spectrum based on scientific models which owe much to the theoretical legacy of the 20th-century, a fictional landscape comes into view that defies the most basic laws of nature, the wicked and evil economic practices and the established but imaginary political, spiritual and even geographical order of the world.
Superficções (“superfictions”) is a cosmogony developed by Antoine Guerreiro do Divino Amor to explore a reality that lies beneath our – artificial and camouflaged – mainstream existence. It is a map of rare beauty and acuteness. It may appear paradoxical, but giving a short summary of that other world – which is actually our own world – requires a clear head and some rational thinking, which might help us, even if only a little, to understand the artist’s motives for dreaming up such madness that is brimming with insights and visionary talent. (If I were to claim that it wasn’t a challenge to figure out the meaning of the artist’s work, I would also be talking fiction; and although I take my inspiration from him, his fiction would take precedence over mine in exposing the crude and banal reality of life.)
Antoine Guerreiro do Divino Amor holds a degree in architecture from the École Nationale Supérieure d’Architecture de Grenoble. As the child of a Swiss father and a Brazilian mother from Rio de Janeiro, he is a half-breed in the best postcolonial sense of the word. The name Guerreiro (meaning “warrior”) comes from his mother’s side, while the name Divino Amor (“divine love”) was taken from one of his stepmothers, a pastor in an evangelical church in Rio de Janeiro. In his early investigations of the underlying reality of the world, he had recourse to the philosophers and masters who construed the universe according to the perspective and mindset of Western civilisation. But the canon of works that conquered the world after the unfortunate advent of modernity forced the artist to perform a radical shift in his thinking to be able to challenge the traditional power structures, which are unstable and ineffective despite their apparent robustness and are directly linked to the vertical hierarchies of academia and science.
Interested at first in the powers that conspire to determine the course of our epic misfortunes on this planet, the artist ultimaltely abandoned the global perspective and, as a consequence, the project of developing a new sociopolitical and symbolic theory of megalomaniac proportions. Instead, he headed south in an iconoclastic return to the maternal tropics, which inspired him to explore the complex reality of the New World – following the example set by Lévi-Strauss almost a century earlier.
Bathed in the sunlight and the warm equatorial waters of this new environment, Antoine Guerreiro do Divino Amor rediscovered not only the scents and memories of his childhood, but also the fears, adventures and fantasies that had marked his adolescence: sex and religion wrapped in a euphoric haze, transgression and authoritarianism. And because tensions dominate the world, and advances are possible only because of them, the revolution in his theoretical thinking in Brazil gave fresh impetus to his seminal explorations of the social dynamics and political upheavals of humanity.
With the aim of finally capturing the superreality that keeps us going as we wearily go about our business day in day out, he focused on the local sins and crimes as well as on the unscrupulous façades of a country that insists on making a clean sweep of its history and always refers to a promising future which it has never actually experienced. This is why the author Stefan Zweig came up with the slogan “Brazil, country of the future!” and why the former Brazilian president Juscelino Kubitscheck coined the phrase “50 years in 5 years” (under Kubitscheck, it took only such a short period of time to build the city of Brasília, which the architect Sérgio Bernardes described as a blatant “historical blunder” for a variety of reasons, such as shutting the people out of the centres of power).
Now, well into the new millenium, we know that our representative democracy is a sham – just like many others around the globe, incidentally. We know that we are still governed by the oligarchs who ruled our country for much of history, and by the dominant media outlets and their cunning advocacy of reactionary ideas that are currently stirring up the country. Therefore, it is imperative that we look for semantic and symbolic alternatives that can make sense of the inferno created by a fascist and secretive political elite, which is activating the same old mechanisms of corruption that come attached with power – not to mention the prominent role played by the evangelical church in the process of imposing outrageous tax laws on people in the name of the “divine” power.
Superficções takes a closer look at Rio de Janeiro, the place that represents the quintessence of the Brazilian way of life, where racism, prejudice and government brutality are swept under the carpet, a tableau presented to the masses, painted in tropical colours with a sublime, fictional beauty which it scatters over the world as an antidote against their ranting. The “sociological” categories conceived by Antoine Guerreiro do Divino Amor undermine the maintenance plans of the traditional echelons of power, replacing them with a new order that operates above and beneath the realm of us mere mortals. Its gassy, poisonous effects can no longer be sublimated and rise to the surface like lava from volcanoes, an allegorical reflection of the horrific underworld that might even blind the dull eyes of the dignitaries who look down on the rabble from their golden governmental palaces.
While we insist on living within the matrix of the artificial reality without asking any questions, the superfictions reveal a new universe that is as productive as the workers who are generating our mystical wealth, always promised but never attained. Everything is political, as the artist would have us know.
Like a sort of sphinx on LSD, he asks a riddle: “Open your eyes and tell me, what is it that flows in the open veins of the Brazilian people – mud or glitter?”