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Entrevista com Clarissa Diniz

Temporada de projetos 2018 no Paço das Artes

Desde 2005, Guerreiro do Divino Amor vem realizando o projeto Superficções, uma pesquisa sobre complexos urbanos que já se desenvolveu a partir de Bruxelas, do Rio de Janeiro e, agora, de São Paulo. O projeto se caracteriza como um processo de criação em aberto, atravessado continuamente por novas informações e contextos que retroagem sobre o trabalho, transformando-o e assim compondo novas versões do mesmo. Esta entrevista, realizada em abril de 2018, no ateliê do artista, no Rio de Janeiro, trata de alguns aspectos caros à dimensão processual do projeto.

 

Clarissa Diniz | Vamos começar pela invasão do superlativo na sua obra? Como é que o super surge? Como ele se articula à ficção? E como essa adjetivação louca que sustenta suas obras tensiona a linguagem científica que é emulada no projeto Superficções?

 

Guerreiro do Divino Amor | Olha, começou já no primeiro capitulo em Bruxelas e desabrochou no SuperRio... O Rio é muito superlativo, foi supernatural e inevitável. Por outro lado, o meu trabalho precisa desse prefixo para se distanciar da realidade e criar uma linguagem não tão pesada, para que não vire um puro panfleto político. O super já abre uma porta de percepção para um universo de ficção cientifica. Foi um instrumento de acesso a um publico maior, preocupação muito presente desde o começo do projeto.

 

CD | E o super se tornou também uma chave de leitura. Ao mesmo tempo, seu trabalho com o Rio acompanhou um momento historicamente superlativíssimo, com os supermega eventos. A supertransformação da cidade.

 

GDA | Tudo vira super porque tudo é super escancarado.  Curioso é que no começo do projeto de São Paulo eu não queria usar o super. Ia ser outra coisa, mas aí todo mundo falava assim. A linguagem deles tem muito mais super. [Risos] Aí eu falei “ah, então vai ter que ser mais um!“, mas não sei se vai continuar a ser em outro lugar. Vamos vendo o que cada lugar transpira.

 

CD| O superlativo como lente para olhar o Brasil. E como essa lente se articula ou se rearranja agora, nesse momento em que o projeto passa a pensar São Paulo? Aproveitando, gostaria de pedir para que você comente um pouco sobre a diferença entre produzir um capitulo do projeto nessas cidades diferentes, considerando que no Rio você vive um pouco mais a condição de ser daqui (ainda que também seja estrangeiro), o que não é o caso de sua experiência na pauliceia.

 

GDA | O trabalho de São Paulo ainda não terminou. Tem um monte de camadas que não foram exploradas, outras temáticas que também não deu tempo de trabalhar. No Rio, a investigação foi baseada em conhecer grupos sociais diferentes, até porque minha mãe é de um determinado meio, e minha madrasta é do meio social oposto... Aí depois tive vários namorados em todos os cantos do Rio e da Baixada, então tinha já essa vivência da qual nasceu o trabalho.

 

Em São Paulo, estou começando a ter essa vivência com pessoas mais próximas, intimamente, agora.  Primeiro tive a experiência de me deparar com esse monstro e me perguntar “como é que isso foi acontecer?!” Como é que isso pôde crescer de uma tal forma e virar essa máquina única? Por isso o trabalho teve mais essa pesquisa nas origens, na história e explorou toda a simbologia de São Paulo. Foi se tornando uma pesquisa sobre os mecanismos de funcionamento da cidade, 

 

CD | A ideia de máquina está mais forte no trabalho de São Paulo do que no SuperRio, Superficções.  

 

GDA |É. A pesquisa de agora foi mais racional. O Rio era uma coisa primeiramente emocional, tinha essa coisa que me ultrapassava completamente. A cabeça não conseguia ligar muito bem os pontos. Desde criança, o Rio é muito misterioso pra mim, e muito fascinante.

 

CD | Isso está muito claro no trabalho, já que o SuperRio carrega essa alusão à natureza, ao fenômeno do tempo, enquanto em São Paulo o condutor da narrativa é uma ideia de máquina, de engrenagem... As duas ideias se complementam o tempo inteiro, pois são fluxos, coisas que se conectam, que implicam em outras, modos de funcionamento. Mas no trabalho de São Paulo parece ser mais racional, mais ordenado.

 

GDA | Tem também sempre umas questões sobre as quais eu estou afim de falar. Assim, cada lugar se torna um pretexto para tratar de uma série de coisas. Em São Paulo isso levou a falar desse espirito da conquista, dessa glorificação dos bandeirantes, do imaginário de empreendedorismo e essa coisa dura de trabalho, de imigração, de vencer na vida. Essa separação em caixas, e hierarquização das origens no Brasil. Cada um é colocado em seu lugar na história, com sua narrativa, e o que não está em nenhum lugar é apagado, enquanto outros são glorificados no imaginário coletivo, construindo uma máquina onde cada um é uma peça.

 

CF |Uma máquina social. E esse momento de São Paulo e a imagem construída pro outro, pra vender São Paulo, a privatização, o mercado imobiliário? E Dória? E Silvio Santos? Esses personagens, essa imagem bicéfala? São Paulo foi um pretexto – como você acabou de mencionar – ou de fato essa espécie de mito que o filme narra surgiu depois de sua passagem por lá?

 

GDA | É já de antes. Cheguei lá bem quando Dória tinha acabado de tomar posse, então foi naquele boom e ele representava uma caricatura de todos esses temas que eu estava abordando. Silvio Santos também. Para mim Silvio Santos sempre foi São Paulo, essa figura persiste desde a minha infância, ensinando a ganhar.

 

CD | A imagem social da fortuna, do mérito, do dinheiro.

 

GDA | Da ostentação. Até pela história dele... Ele é a encarnação desses valores. Da meritocracia, de “ó, viu? Se esforce, vamos lá e que tudo vai dar certo!”. Essas duas figuras de repente estavam juntas naquela interação com a história do teatro Oficina, formando um triângulo com Zé Celso Martinez Correa, o que me fez pensar neles com mais objetividade.

 

Aí fechou a criatura bicéfala do filme. Eu fiquei brincando com as cabeças e vi que os rostos se encaixavam perfeitamente. Descobri então que são a mesma pessoa, e pronto. Não tem efeito nenhum, eu só cortei, joguei e parece que se sugaram e ficaram ali.

 

CD |Machos, brancos, ricos, mais velhos, bem-sucedidos... Estereótipos que parecem encarnar certa imagem, certo discurso de São Paulo. Mas como tudo isso começou, lá em Bruxelas? Você poderia fazer um breve retrospecto do projeto, de como ele nasceu?

 

GDA | Começou em 2004. Eu estava realizando mestrado em arquitetura em Bruxelas, numa área de pesquisa chamada condição urbana contemporânea, que tratava de como os diferentes fenômenos da sociedade influem na construção da cidade, no urbanismo, em todos os seus níveis, né?! Era uma grande pesquisa e cada um dos mestrandos tinha que desenvolver um projeto. No primeiro ano, o tema era shopping: como o consumo influi na construção da cidade. Ao longo da minha pesquisa, fui acumulando material – material de revistas, entrevistas de donos de shoppings... Fui muito para congressos de promotores, para entender a lógica do negócio e das pessoas que pensam e vivem disso. Na época, eu andava muito em ocupações também: tinha todo esse movimento contrário a essa lógica de mercantilização da cidade, mas que ficava mais discutindo entre si. Eu tinha realmente vontade de ver como é que funcionava o lado que eu conhecia menos, o do consumo. Ainda não tinha essa coisa toda de internet, mas já tinha esse desejo por parte dos governantes de querer controlar, de criar uma imagem. Era o desabrochar do marketing de cidade, da ideia de se vender os lugares, ainda mais lá, que é uma capital europeia para onde vão muitos funcionários internacionais. Só que, ao mesmo tempo, Bruxelas é uma cidade muito suja e pobre para os padrões da Europa. É, digamos, bem desleixada – principalmente o centro –, por isso a vontade de higienizar a cidade, de construir corredores com prédios espelhados para as pessoas circularem e acessarem os lugares sem ter que ver o outro lado ... Então eu comecei a construir duas civilizações, que passaram a habitar o trabalho ao longo de todo o processo.

 

CD | O superimpério e a supergaláxia, não é?

 

GDA | É. Uma guerra entre duas civilizações, na qual quem ataca é especialmente o Superimpério: a civilização organizada dos superconsórcios, que tem imagem higiênica de cidade e de mente, uma coisa calculada, livre de todas as forças espontâneas. A outra civilização, a Supergaláxia, vive da ocupação espontânea da cidade, de uma vida talvez mais ancestral. São civilizações complexas, que se encontram em cada lugar do mundo. Por exemplo, no modo de comercialização dos produtos em um shopping ou em uma feira de rua como os “shopping chão” do Rio de Janeiro. Muitas vezes são vendidos os mesmos produtos, mas a disposição deles indica outra relação com o vendedor, com o comprador, com a cidade. Busquei estudar esses comportamentos. Fiz uma pesquisa sistemática, investigando como as pessoas dessas civilizações conversam, se sentam, o tipo de vocabulário, o tom de voz, a música, os materiais, os lugares, o ambiente sonoro, o ambiente de luz, a decoração e como tudo isso era sentido pelo corpo. Toda essa diferença de escala... Enfim, uma observação muito sensível. Tinha todo esse material, essas observações..., e aí surgiu a ideia de uma revista e no processo de elaborá-la apareceu a ficção, o que foi uma surpresa para todo mundo, inclusive para mim! De repente, na escrita da revista, tudo se encaixou.

 

CD | Então a narrativa ficcional não existia a princípio, certo? Sua intenção inicial era uma espécie de antropologia urbana, ou algo do gênero?

 

GDA | Não existia... Uma semana antes da apresentação da pesquisa, eu não sabia o que iria apresentar para a banca. De repente apareceram as duas civilizações e tudo se encaixou. Foi uma loucura! Fiquei sem dormir, escrevendo e diagramando a Batalha de Bruxelas.

 

CD | Antes da revista você já havia experimentado a dimensão ficcional em outros trabalhos e intervenções, não é?

 

GDA | Sim... Na verdade, acho que tudo começou numa performance na inauguração de uma loja de móveis, num shopping de Bruxelas, onde passei uma noite. Na ocasião, a loja havia convidado as pessoas a dormirem nas camas da loja, então fui até lá atraído por fazer uma falsa revista comercial, uma publicação de espionagem das forças galácticas cujas informações eram, por meio da revista, vendidas às forças imperiais. Era um caso bem louco.

 

Outra experiência foi uma exposição com uma parceria minha, Julie Menuge, em torno de uma cidade ficcional. Em 2004, fizemos um monumento ficcional, denominado Paxicule, em um poste de metal antigo, num matadouro desativado de Eupen. Pintamos o poste de dourado, construímos uma loja, fizemos um monte de postais e de souvenirs, de canequinhas, de camisetas... Um exagero, uma coisa!

 

Fiz com um pessoal da arquitetura, e considero como o meu primeiro trabalho de arte. Conseguimos botar uma luz no monumento, e pronto! A gente enchia o saco de todo mundo que passava pra tirar foto, revelava e imprimia na hora.

 

CD | Então foi uma ficção que operou diretamente na cidade, né? Um gesto no circuito de turismo do lugar.

 

GDA | É! No ano seguinte, o tema desse laboratório que eu estava fazendo em Bruxelas foi turismo. Fazia muitos anos que eu não voltava para o Rio por não ter oportunidade, nem muita ligação com a família naquela época. Aí ganhei uma bolsa e pude vir pra cá passar vários meses, entre 2005 e 2006. Aí começou o SuperRio, Superficções. O trabalho continuou até 2015, quando finalizei a versão hoje existente.

 

CD | Quase 10 anos se passaram. Como foi essa dinâmica de ir construindo partes e incluindo dimensões nessa narrativa? Conta um pouco sobre essa dinâmica de uma cidade que vai mudando e um trabalho que vai se transformando junto com ela...

 

GDA | É, etapas diferentes do trabalho surgiram em épocas diversas. No primeiro momento surgiu o texto. Depois eu me desliguei completamente dele, deixei do jeito que estava: um texto e alguma visualidade. O texto é basicamente o mesmo desde lá, com algumas adaptações, até porque não tinha redes sociais, internet, essas coisas que tomaram uma importância enorme hoje em dia. Ele ficou parado até 2013. Nesse intervalo, fiz um curso técnico de efeitos especiais, o que era meu sonho. Voltei ao projeto depois disso, com a capacidade de realizar coisas que eu antes não possuía.

Mas, antes, comecei a experimentar os efeitos quando vim morar no Rio e fiquei fazendo filminhos, teasers do bloco de canaval Bunytos de Corpo. Brinquei com isso até tomar mais jeito e começar a sentir, a construir uma realidade paralela e conseguir expressar isso de algum jeito.

 

CD | Até desenvolver uma linguagem.

 

GDA | É, uma linguagem que plagiasse a realidade, com uma estrutura sensacionalista, mas – assim como a

revista Batalha em Bruxelas – que tivesse também uma diagramação clássica. Eu queria realmente ter essa ideia de atlas, para esse universo tomar vida, sempre a partir de realidade. Não foi necessário acrescentar nada. A ficção cientifica já está aqui, estamos rodeados por ela e morando nela. Só precisei exaltá-la.

 

CD | Essa linguagem – tanto a visual, quanto esse tempo narrativo – é marcada por um encadeamento dos efeitos numa estética de colagem, de apropriação de signos e visualidades do cotidiano. No seu trabalho, essa poética da colagem é bastante ácida e saturada, carnavalesca. Lembro da sua relação com o Bunytos de Corpo, que é também bloco de carnaval, e fico interessada em saber da importância do carnaval, da rua, do bloco, da festa, pra constituição dessa linguagem...

 

GDA | Isso eu sempre tive, sempre foi a estética que me atraiu desde pequeno. A minha inspiração mais forte era a Xuxa. Desde cedo eu tive essa identificação muito forte com ela, com esse universo de luzes e cores, aspectos também de clipes de música. As cores fortes, que faziam vibrar, acabaram assim se encaixando no trabalho, naturalmente. O Bunytos se prestava a isso também pelas cores do neon, do corpo, do sexo, do suor com o corpo vestido de lycra...

 

CD | Algo de colagem, de uma realidade colada à outra, a dobra de uma coisa sobre outra.

 

GDA | Se você vai ver o catálogo de empreendimento, você vê ficção cientifica: as cores, a coisa trabalhada, é uma construção de magia. Só que aí você mistura isso com propaganda de turismo, com uma revista de ciências naturais, outra revista histórica, um programa policial (um “Cidade alerta” da vida), como se, ao invés de estar trocando de canal na televisão, eles aparecessem todos ao mesmo tempo, incrustados uns nos outros. Adquiriu também um caráter cósmico, dado como as coisas foram aparecendo em forma de visões... Mas sempre tentei fazer o mais realista possível.

 

CD | Tem que ser verossímil porque é real. Tem também o didatismo da mulher do tempo, do fato, enfim, um caráter explicativo, revelador, esclarecedor

 

GDA | É sempre uma preocupação. Mas acho que hoje em dia vem mais naturalmente. Antigamente era uma grande dúvida de até onde ir com o superlativo, para não ficar uma coisa chata, porque também não acho interessante essa coisa de “ah, vou te pegar e te explicar sobre o mundo...”. Claro que quero contar alguma coisa, mas também tem essa parte de deixar em aberto, de botar um monte de questões e pronto, cada um faz o que quiser com isso, né? Deixar um espaço de liberdade para a pessoa, para ela chegar e dialogar com esse universo.

 

CD | Esse espaço em aberto para quem vê o trabalho acontece melhor nos painéis que você tem desenvolvido mais recentemente, não? Os filmes são eminentemente mais narrativos, acabam sendo mais didáticos.

 

GDA | É por isso que eu achei interessante fazer os painéis. A pessoa se perde lá dentro... Isso que você estava falando, sobre a acumulação das imagens, isso acontece mais nos painéis.

 

CD | Isso porque eles se comportam mais como imagem do que como narrativa, já que o vídeo é verbalmente conduzido numa linearidade que se quer explicativa... Mas os painéis são muito recentes, não é?

 

GDA | É, são bem mais recentes, têm menos de dois anos. Em ideia eles já existiam, mas tinha a questão técnica e de tempo, um momento pra experimentar a execução deles. Inicialmente eles eram cartazes, e com o tempo foram se tornando painéis com partes que se mexem, uma coisa de luz, inspirada nos museus de ciência. Painéis para explicar fenômenos a partir do movimento. Isso sempre me fascinou tanto quanto o carnaval, quanto a Xuxa...

 

CD | Quanto um camelô...

 

GDA | É, aí eu tive essa ideia de ir comprando coisas e experimentando montá-las para fazer os painéis.

 

CD | Você comprava o que? Que tipo de coisa?

 

GDA | As coisas dos chineses... No natal é bom, época de muita coisa colorida. Fui descobrindo... A cachoeirinha, por exemplo, só agora, no Paço das Artes, é que vai funcionar de verdade. As cachoeiras descendo, montadas com controle de velocidade... Vai ser chiquérrimo, estou muito feliz porque essas cachoeiras são muito importantes e nunca consigo instalá-las como eu quero. É coisa pra engenheiro, né? Eu tenho que saber dos meus limites [risos].

 

CD | Essa especialização faz parte da sua obra. Os efeitos visuais também vêm desse universo técnico da imagem, do cinema, o qual você precisou estudar para aprender. Mas, por outro lado, você tem o lado não especializado, das coisas ordinárias que estão dadas nas ruas de uma cidade. Sua obra está na rua, numa pesquisa feita pelos lugares, no encontro com as pessoas, por meio das narrativas e da experiência de cada um... De seus familiares, amigos, namorados, pessoas que cruzam sua vida. O painel tem a força de trazer a cidade por meio do caráter globalizado de seus componentes, que vêm de partes diversas do mundo para construir sua narrativa de um modo comum, ordinário e até um pouco tosco, sem precisar ser devedor de técnicas restritas a especialistas ou ao universo hightech. Acho bonito que seu trabalho transite entre esses dois modos de produção...

 

GDA | É bom, né? As superficções absorvem tudo que está ao redor.

.

CD | E como é que foi a recepção do trabalho? Como é que você imagina o seu trabalho no mundo hoje? Como que você vê a recepção dele?

 

GDA | Eu fiquei bem surpreso, nem esperava tanto. Teve essa coisa de o video viralizar por conta de umas imagens que filmei na Marcha para Jesus: Eduardo Cunha tinha acabado de ser eleito presidente da Câmara dos deputados, e de repente aparece ele no palco abraçado com Silas Malafaia falando aquele monte de barbaridades. Na hora, entreguei o video para uns amigos midiativistas, o que fez o video tomar outra dimensão. A revista também foi muito usada em escolas, vários professores levaram para trabalhar com seus alunos do ensino médio. Fico muito feliz de o trabalho circular muito por outros canais que não são os das artes. Até porque ele é pensado pra atingir a todos.

 

 CD | E não unicamente pelo caráter ficcional, mas pelo ativismo mesmo que ele também tem. Essa possibilidade de ir atualizando, incluindo as urgências de cada momento, é parte muito importante do projeto Superficções, não é?

 

GDA | É, tem a coisa urgente do momento e coisas endêmicas, os tempos super-rápidos da atualidade e fenômenos que estão imutáveis há séculos. Apesar de o filme SuperRio ser claramente datado, da época pré-olímpica.

 

CD | E as ideias do superimpério, supergaláxia, supervórtices, conceitos que você vai desenvolvendo ao longo do projeto? Que são super, super, super úteis para a gente entender a nossa realidade. Como você já falou sobre o superimpério e sobre a supergaláxia, pode agora falar um pouco dos supervórtices?

 

GDA | Os supervórtices espaciotemporais são uns buracos negros que sugam e conectam diversas partes geográficas ou épocas, colocando-as em sincronicidade. Por exemplo... Na barra da tijuca tem um supervórtice, ligando ela a um monte de outros lugares de estrutura similar. Os grupos sociais vão se diferenciando tanto que acabam se aproximando mais de pessoas que estão do outro lado do mundo, em épocas remotas ou num futuro distante. Essas proximidades se desvencilham completamente do território físico e do tempo onde a pessoa se encontra são um tipo de supervórtices. Outro tipo são onde dimensões paralelas se encontram, a exemplo da TV Record, que cria um vínculo entre as duas faces do espelho divino. A pesquisa vai se abastecendo dessas conexões.

 

CD | Os supervórtices ajudam a ver esse caráter cosmológico do trabalho, falando do funcionamento supra geral das sociedades... Dos movimentos dos povos, dos tempos e dos lugares, o que está principalmente no filme do Rio, no qual a personagem da “mulher do tempo” tem um caráter meio demiurgo, de criação de mundos. A criação de narrativas e a dimensão da ficção no seu trabalho têm essa perspectiva cosmológica. Apesar de ser uma leitura política muitas vezes militante, ou de corresponder e responder a um tempo específico, às urgências de cada momento, apesar de ser sobre um lugar especifico (Rio de Janeiro, Bruxelas, São Paulo), o trabalho tem essa operação cósmica. É uma operação importante, pois contribui para se esquivar o trabalho de uma eventual esterilidade, digamos, ‘transtemporal’. Se você puder comentar um pouco sobre isso...

 

GDA | Inclusive os dois painéis se chamam cosmogonia: o primeiro é o Cosmogonia supercarioca superficcional animada e o segundo, Esboço para uma cosmogonia supercomplexa metropolitana expandida.

 

CD | E você tem referências específicas para pensar a cosmogonia?

 

GDA | Vou tendo visões... É claro que a iconografia religiosa tem sempre uma influencia, uma ligação forte comigo, direta, que não posso arrancar.

 

CD | Você também tem referências fortes de museus de ciência, não é? Talvez por seu pai ter trabalhado em museu de etnografia...

 

GDA | Sim! Quando eu construí os painéis foi inspirado neles, com o filme, tinha vontade de desenvolver uma versão para planetário... Também adoraria fazer uma maquete das superficções.

 

CD | Como é que você lida com os riscos da sua trama? Ainda que o trabalho seja bastante complexo, ao mesmo tempo ele também está cheio de binarismos, antagonismos imediatos como “superimpério e supergaláxia”, “o pobre e o rico”, “o trabalho e a exploração”... Na sua prática, como é que você se preocupa (ou não se preocupa) com as leituras que está produzindo sobre o mundo e sobre nossos corpos, posto que são arrojadas e ambiciosas, e muitas vezes totalizantes?

 

 GDA | Morro de medo, claro! Assim, eu procuro pesquisar e pensar bastante (até por isso os trabalhos demoram tantos anos para ficarem prontos)... E aí tem a complexidade humana que vem quebrar esses binarismos; por exemplo, a superinveja do superimpério da espontaneidade e da alma da supergaláxia, que ele tenta sugar, e vice versa. São categorias abstratas e totalizantes, mas no fim das contas a maioria dos indivíduos se locomovem entre elas de forma fluida.

 

CD | E você conversa bastante com as pessoas ao longo do processo de criação?

 

GDA | É mais indireto. Não vou perguntar direto... Fico mais observando e absorvendo. É claro que o trabalho se vincula com os movimentos sociais atuais, principalmente o movimento negro e movimento das mulheres, que estão finalmente influenciando o debate uma escala maior, ocupando novos lugares.

 

CD | Quando você descreve o processo de criação de Bruxelas, fala muito de estar observando, pesquisando, anotando – esse lugar meio etnógrafo de si mesmo, do seu próprio contexto. Me parece que seja um método que perdura até hoje, porque tem artistas que vão produzir leituras em métodos mais coletivos e colaborativos, de troca de experiências, ou quiçá mais dialógicos. Mas o seu trabalho é meio que de um cientista à moda antiga, né?! Ele é muito individualista, num certo sentido. Você olhando, observando, analisando...

 

GDA | É, e às vezes me pergunto por quê. Tem gente por aí que até achava que o Guerreiro do Divino Amor era um coletivo, um monte de vozes. Não é um diálogo direto – não vou mentir –, mas tem uma escuta silenciosa, com muita cautela, demorada...

 

CD | Claro! De toda forma, é um trabalho crítico e de criação, e como tal ele pode abdicar de certos métodos.

 

GDA | Quando eu cheguei no Rio, fiquei com muito receio de apresentar o SuperRio, Superficções porque tinha feito lá fora, e não morando aqui. Foi elaborando comigo tendo essa relação bem louca com a cidade. de proximidade pela minha história familiar e afetiva e de distância geográfica. Eu estava até tremendo na primeira vez em que apresentei o trabalho aqui. Mas depois, na exposição, vi que ele teve aceitação e adquiri alguma confiança no projeto. Mas chegar aqui assim, sem conhecer e sem ter essa vivência de ter crescido aqui, me fazia pensar no que iriam falar... “Quem é esse gringo que chega e quer saber tudo?”

 

CD | “Quem é esse colonizador? Explicando pra gente como é que a gente é, como a gente funciona?!” Ao mesmo tempo, essa condição etnógrafa, de passar pelos lugares, de estar distante, também possibilita que um olhar que se instaure com outras formas de critica.

 

GDA | Tem essa coisa de estar fora e dentro.

 

CD | Total! Eu acho que o seu caderno demonstra um pouco do seu processo de percepção, análise e criação, pois é possível ver como essa espécie de diagrama que sustenta a narrativa vai se construindo nos milhares de rabiscos e desenhos que vão se imantando entre si e ganhando corpo... A cada página aparece um novo elemento, e esse elemento é repensado, é rearranjado, se articula com outros, passa a integrar fluxos, muda de lugar dentro da cartografia... Novas palavras surgem, novas questões aparecem ao longo desse processo. E o seu caderno revela a capacidade de contaminação de sua pesquisa solitária, uma vez que vai tomando para si as informações que lhe atravessam... Por isso fico também curiosa em saber da relação entre seu pensamento gráfico (o desenho, o diagrama) e o escrito, uma vez que o texto que serve de roteiro para o filme é a coluna vertebral da obra.

 

GDA | É que o texto tem um começo e um final, né?! Já o diagrama tem essa leitura livre como a do painel, na qual você começa em qualquer canto e vai para outro canto sem uma ordem específica.

 

 CD | Vendo os seus cadernos e diagramas, percebe-se que o painel é a extensão natural – uma continuidade – do caráter diagramático da sua pesquisa. No entanto, entre eles, há um filme que elaborado numa sequência marcadamente mais linear, vinculada ao texto. Como essas duas formas de pensar lhe acompanham?

 

GDA | Acho que é importante ter ambos. Se fossem só os painéis, o trabalho perderia porque faltaria dar nome aos bois porque, realmente, eles têm nome e isso é importante para nosso momento político. Para mim, isso é o mais difícil porque é aí que você tem que estar mais concentrado nas palavras, em medi-las, já que a imagem brinca mais com o inconsciente coletivo do que o texto, que tem um significado mais fechado.

 

CD | Vamos falar um pouco sobre os personagens? E, claro, sobre o personagem central, o Guerreiro do Divino Amor?

 

GDA | Guerreiro é sobrenome mesmo, e o Divino Amor nasceu com a minha madrasta, que hoje em dia é pastora evangélica e sempre completava meu Guerreiro com o Divino Amor. Era provocação na época: eu era adolescente e a gente ficava brincando com isso, aí peguei esse nome pra mim porque achei bonito. Nasceu de um deboche, realmente, mas ficou sério... Acho que vibra bem, e me ajuda nos momentos mais difíceis pela força que tem. O Divino amor tem uma missão; quando às vezes perdemos o foco da vida, ele nos dá direção.

 

CD | Hoje, pensando num Brasil cada vez mais evangélico, é um nome que parece fazer parte da nossa vida, do imaginário social. Parece um nome que surge como um comentário, e talvez essa impressão venha do fato de que o seu trabalho de alguma forma comenta o seu nome. Para mim, faz sentido que um personagem chamado Guerreiro do Divino Amor esteja fazendo essas Superficções. Ele integra essa ficção sendo real, é um nome-gesto, inclusive por vir de sua história de vida, afetiva, espiritual, familiar. Fico achando que, dentro do complexo das Superficções, esse nome tem um papel importante...

 

GDA | Ele tem sim.

 

CD | Além de tudo, o nome comunica para além o mundo da arte, o que é um grande interesse seu. Afinal, seu trabalho nasceu como intervenção dentro de um shopping, e sonha em ser planetário e até mesmo enredo para desfile de escola de samba, não é?

 

GDA | Isso! Seria maravilhoso ser enredo. Mas também ser feira, estar nesses “salões” imobiliários... Ser conferência (fiz uma para apresentar o projeto lá em Bruxelas, para 300 pessoas, super séria)...  E ficar viajando pelo Rio, nas praças, com um estande, tipo esses containers promocionais que vemos pelas ruas. E ver o que acontece.

 

CD | E o que mais você quer fazer? Como atlas man, o que que você desejaria cartografar?

 

GDA | México, eu quero muito... Colômbia também, que eu não conheço nada, mas queria ir. Já comecei a fazer Cali, e gostei

 

CD | Tem essa coisa das drogas, em todos os três lugares, sob condições distintas... Curiosamente, essa dimensão não foi explorada ainda no SuperRio, não é?

 

GDA | Não! Tem um pouquinho em São Paulo, tem um monte de coisa que eu não tenho propriedade pra falar, tem tanta gente que já fala tão bem de um monte de assuntos...  No projeto de São Paulo tem aqueles discos voadores dos quatro cavaleiros superdivinos, que pode abrir para a dualidade Igreja e tráfico como carreira de vida, essa dimensão forte de organização. Tem um paralelo muito grande da Igreja com o tráfico como plano de carreira, inclusive.

 

CD | Além das articulações e alianças...

 

GDA | Perspectivas e territórios que eles disputam ou que às vezes juntam.

 

CD | O narco-estado... No Rio, essa coisa da milícia...

 

GDA | Outro lugar que me interessa é minha terra natal, a Suíça, onde pensei em fazer um projeto a partir da Deusa Helvetia. E também a China... Muitas vezes acham que, pela visualidade, meu trabalho é chinês. E tem essa história de que você falou naquele dia, do Nordeste, com a qual tenho uma relação forte também...

 

CD | Você poderia fazer uma versão só de Arcoverde (Pernambuco), seria maravilhoso! SuperArcoverde! Seria genial!

 

GDA | Hilariante! Arcoverde tem muita coisa...! E eu poderia incluir Buíque! [risos]

 

CD | É interessante fazer essa leitura supercomplexa de um lugar superpequeno, superinvisível. Até porque, no que tange ao Rio e a São Paulo, seu trabalho se apoia em figuras públicas, numa história macropolítica da cidade. Em Arcoverde, dada sua experiência por lá, talvez você pudesse encontrar a possibilidade de cartografar também o pessoal, o subjetivo, o familiar, o invisível, essa dimensão micropolítica da cidade...

 

GDA | E lá tem essas figuras, o padre, o cara da rádio, gente que tem superpoderes na cidade... Mas se eu fizer, vão matar e eu nunca mais vou poder voltar pra lá...! [risos]

 

CD | Só vai poder voltar mascarado, no carnaval!

 

GDA | Mas vão é ficar perguntando “quem foi que fez isso?!”

 

CD | Qualquer coisa, fala que não foi você, Antoine; diz que foi esse tal de Guerreiro do Divino Amor... [risos]

 

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