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As Superficções do Guerreiro do Divino Amor – branquitude, superhibernação e supermessianismo

 

Clarissa Diniz

 

 

 

 

Em que pese a responsabilidade de se pensar a colonialidade no Brasil – desmontando invisibilidades e reparando historicamente seus genocídios e epistemicídios –, fica cada vez mais patente a necessidade de endereçar-se não apenas ao outro do euroetnocentrismo, mas àqueles que, por seus privilégios, ocupam posições

a ele contíguas. Problematizar e destituir a colonial supremacia da branquitude é inextricável do comprometimento em salvaguardar protagonismos e centralidades aos não-brancos. Na arte, a monopolização dos regimes de representação nas mãos de alguns implica, inevitavelmente, na manutenção da impossibilidade

política da auto representação em geral e, com ela, na falência de qualquer representatividade. Nesse sentido, o exercício do direito à auto representação por parte daqueles que têm sido historicamente impedidos de acessá-la requer, dos que ocuparam a representação como ponto de vista, o dever de representarem a si e a suas perspectivas. Diante do despotismo de ter alçado a universal um único ponto de vista, canonizando-o enquanto a

própria ideia de representação, demandar que representemos a nós mesmos parece eminentemente mais ético do que autoritário. Entretanto, é possível contar nos dedos quais são os artistas que, no Brasil, estão produzindo auto representações fora do espectro dos sujeitos cujas imagens lhes haviam sido saqueadas. Enquanto travam-se lutas pela presença de artistas negros ou indígenas e suas auto representações – ou quaisquer questões que lhes interessem para além da abordagem identitária – no âmbito da arte, em sua maioria, os artistas não-negros e não-indígenas se conservam estratégica e confortavelmente distraídos em relação ao dever político de se representarem sem ficcionalizar a coincidência de nossas imagens brancas, judaico-cristãs, patriarcais, etc, com a

ideia da representação em si mesma. Sem rodeios: ainda hoje, a arte produzida no “miscigenado” Brasil não tem enfrentado a branquitude que lhe é constitutiva. É nesse contexto desértico que situa-se, por sua vez, a obra de Guerreiro do Divino Amor.

 

Superficções

 

Desde 2005, Guerreiro do Divino Amor vem realizando o projeto Superficções que, partindo de complexos urbanos, se lança sobre formas de organização social, política, econômica, religiosa, moral e cultural das cidades. Filho da ‘globalização’ e da internet, tem combinado a experiência de residir nos locais por ele ficcionalizados

ao trabalho de um arqueólogo digital, que escava no emaranhado das informações da web as iconografias e os imaginários dos quais se apropria, num processo de criação em aberto que é continuamente atravessado por novos dados, configurando narrativas infinitas apresentadas em capítulos. Bruxelas, Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília e Belo Horizonte têm constituído, assim, diferentes portas de entrada dessa superficção que tem, como fundo, a aventura civilizacional. Não a reiteração do messianismo imperialista que anseia por hegemonia econômica, política e simbólica, mas sua problematização e sátira: é tomando o mapa mundi como pano de boca que Guerreiro do Divino Amor tem elaborado sua dramaturgia das disputas entre diferentes povos,

nações, classes, grupos, indivíduos e as cosmopolíticas que nelas se chocam e que delas derivam. Colonizada pelos horizontes utópicos da harmonia social enquanto avançava o imperialismo e a expectativa de encontrar um paraíso perdido, a ficcionalização tornou-se refém tanto de um passado mítico quanto de um imaginário futurista. Vem contudo, se descolonizado desde que os édens não se mostraram localizáveis e, principalmente, quando os “bárbaros” que ocupavam as terras a ele imaginariamente destinadas insurgiram-se contra o projeto “civilizacional” euroetnocêntrico, desvelando sua ficcionalidade. Considerar ficcionais as bases epistêmicas, ontológicas e jurídicas de um mundo em franco processo de cataclisma é, evidentemente, libertar a ficção do cárcere da paz e criadoramente encarar a guerra, o apocalipse e outros fins já em curso, ficcionando o real para pensá-lo 1.

 

Guerra

 

Superficções fundamenta-se numa guerra primordial: o Superimpério versus a Supergaláxia. Ainda que assuma características específicas a cada capítulo, é, em linhas gerais, uma guerra entre “civilizações dicotômicas que lutam pelo controle do espaço e da mente dos humanos”. Enquanto a Supergaláxia se move por “impulsos descoordenados”, o Superimpério “é uma máquina de batalha racional, comandada por superconsórcios”, como revela Supercomplexo metropolitano expandido (2018), no qual São Paulo é apresentada em sua dimensão maquínica do poder, das carreiras, da meritocracia e do dinheiro. Nas disputas em jogo na pauliceia são obliterados e escamoteados os sujeitos sociais excluídos de seu projeto de sucesso: por isso, protagonizam o filme o projeto bandeirante, a escravidão, as igrejas, os jogos de sorte, os bancos, a mídia e o prefeito Dória, compondo a cartografia desse Supercomplexo interligado por superdutos e supervórtices que garantem seu funcionamento.

Atento às representações de sua própria posição social, a Guerreiro interessa não só o escrutínio, como também a nominação dos sujeitos e das organizações que fazem funcionar os dispositivos de manutenção e de produção de poder que protagonizam seus filmes, dos quais os indivíduos oprimidos pelo Superimpério são, como fica também evidente em SuperRio (2015), vítima e infraestrutura.

 

Estética

 

Mais do que se apropriar de imagens recortadas de seus veículos originais e rearranjadas junto a outros elementos, nos filmes, painéis e publicações que compõem Superficções têm papel central os tratamentos aos quais são submetidas suas imagens, provocando-nos a simultânea familiaridade e estranhamento que são

os fundamentos críticos do projeto. Por meio dessa estratégia de montagem se constitui – em dimensões tão objetivas quanto inconscientes – um dos terrenos centrais da batalha civilizacional

entre o Superimpério e a Supercolônia: o estético. Como adverte Divino Amor, a dominação da civilização racional

ambiciona “criar zonas de conforto (...) num mundo à própria imagem: liso, limpo”, por isso promovendo higienizações de toda ordem. O alvejamento social tematicamente presente em Superficções – e que em A cristalização de Brasília (2019) é metaforizado pelos vulcões de água sanitária espalhados pela capital

brasileira, que embranquecem tanto as dimensões terrenas quanto espirituais da vida – é tensionado pela antieconomia estética das colagens que estruturam a narrativa dos filmes: instância onde as disputas estéticas das diferentes classes, raças e gêneros entram em evidência. Considerando que a guerra entre o Superimpério e

a Supergaláxia assume feições de luta de classes, é fundamentalmente o “gosto burguês” que é a todo momento contraposto pela verborragia iconográfica dos filmes e dos painéis animados por mecanismos chineses, cuja totalidade fragmentária e assimétrica não anula, senão acentua, a dominação simbólica e a guerra cultural

entre projetos civilizatórios. Em Supercomplexo metropolitano expandido, a perspectiva racionalista e ordenadora encenada pela voz em off que – maquínica e dessubjetivadamente – conduz o filme é posta em tensão por

efeitos especiais aparentemente anacrônicos e por uma visualidade desobediente, excessiva, hipercolorida, que suspendem o caráter progressista e higiênico de sua retórica. Em A cristalização de

Brasília, o ruído entre a lisura do tema e tessitura crítica do filme se dá com o sotaque goiano da apresentadora de traços indígenas, Sallisa Rosa, que percorre o Congresso Nacional num modelito rosa-choque; e, em SuperRIo, da imagem de uma mulher negra, Pahtchy, atuando como a “mulher do tempo”, uma histórica fetichização

da branquitude machista. É também por sua inscrição no campo da arte que Superficções tensiona as disputas em torno da hegemonia simbólica, uma vez que ocupa o cubo branco e o campo social elitizado da “arte contemporânea” com imaginários que – como os anos 1980 com sua lycra neon, Xuxa ou o brega, o que nos dá a ver o bloco Bunytos de Corpo 2 – estão dele apartados por processos de distinção social, moral, cultural e política.

 

Messianismo

 

Em seu filme mais recente, Guerreiro do Divino Amor enfrenta a história da capital brasileira como ícone da branquitude messiânica. Em A cristalização de Brasília, a guerra entre o Superimpério e a Supergaláxia cede seu protagonismo para uma reflexão sobre o modus operandi da modernidade enquanto colonialidade, a qual,

no Brasil, encontrou na década de 1950 seu ápice melancólico. “A superficção primordial da supernação é o supervazio”, narra o filme enquanto a voz de Vinícius de Morais declama os primeiros e constrangedores versos da Sinfonia do Alvorada (1961), composta a pedidos de Juscelino Kubitschek – “no princípio era o ermo”.

No filme, a fundação e a construção de Brasília são relacionadas com a invasão do território indígena posteriormente batizado como Brasil pelos colonizadores portugueses. Alvejando com jato de água sanitária o lugar que considera supervazio, o gesto colonial ficciona como deserto o que historicamente estava a desertificar:

“não havia ninguém / a solidão mais parecia um povo inexistente dizendo coisas sobre o nada”, presume a poesia de Vinícius enquanto assume estar “tomando posse” do lugar ao nele assinalar “dois eixos que se cruzam em ângulo reto – ou seja, o próprio sinal da cruz”. A empreitada jesuítica e sua catequese, sua atualização desenvolvimentista na década de 1950 e seu ressurgimento messiânico na

forma da neopentecostalização e da eleição de um autoproclamado messias para a presidência do país é o que o filme diagnostica como “febre bandeirante que se multiplica e hipnotiza, se propagando nos seres na forma de uma epidemia de Síndrome de Estocolmo”. Talvez porque crendo estar num deserto, criamos simpatia inclusive

por aquilo que nos fere. Urge, assim, que floresçam as formas de vida que hibernam pelo medo de acordar.

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